Há muito tempo que não publicava Eugénio de Andrade. Aqui fica um curto poema seu :
À Beira de Água |
Estive sempre sentado nesta pedra escutando, por assim dizer, o silêncio. Ou no lago cair um fiozinho de água. O lago é o tanque daquela idade em que não tinha o coração magoado. (Porque o amor, perdoa dizê-lo, dói tanto! Todo o amor. Até o nosso, tão feito de privação.) Estou onde sempre estive: à beira de ser água. Envelhecendo no rumor da bica por onde corre apenas o silêncio. Eugénio de Andrade Os Sulcos da Sede |
Volto ao Herberto Helder (de que tenho pubicado sobretudo versões francesas, tiradas das edições bilingues que encomendei em França, com traduções que , até aqui, me parecem boas)
Sobre um Poema
Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.
Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento,
- a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.
E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sustida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo.
- Em baixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.
- E o poema faz-se contra o tempo e a carne.
Lembrei-me da Luiza (1939-1989). Fomos amigos, de Lisboa e de Paris (a minha primeira mulher tinha sido colega dela na Faculdade). E é com ternura que a recordo (quantas confidências...). Mas há tempos que não a lia. Procurei na Net. E resolvi trazê-la aqui. Com saudade.
A Magnólia
A exaltação do mínimo,
e o magnífico relâmpago
do acontecimento mestre
restituem-me a forma
o meu esplendor
Um diminuto berço me recolhe
onde a palavra se elide
na matéria - na metáfora -
necessária, e leve, a cada um
onde se ecoa e resvala.
A magnólia,
o som que se desenvolve nela
quando pronunciada,
é um exaltado aroma
perdido na tempestade,
um mínimo ente magnífico
desfolhando relâmpagos
sobre mim.
in O seu a seu tempo
Organização e prefácio de Fernando Cabral Martins Assírio & Alvim 2ª edição 2001
E, já agora, uma fotografia dela :
E, já que estamos em fotografias, a propósito do poema :
"Há cidades cor de pedra" :
Há cidades cor de pérola onde as mulheres
existem velozmente. Onde
às vezes param, e são morosas
por dentro. Há cidades absolutas,
trabalhadas interiormente pelo pensamento
das mulheres.
Lugares límpidos e depois nocturnos,
vistos ao alto como um fogo antigo,
ou como um fogo juvenil.
Vistos fixamente abaixados nas águas
celestes.
Há lugares de um esplendor virgem,
com mulheres puras cujas mãos
estremecem. Mulheres que imaginam
num supremo silêncio, elevando-se
sobre as pancadas da minha arte interior.
Há cidades esquecidas pelas semanas fora.
Emoções onde vivo sem orelhas
nem dedos. Onde consumo
uma amizade bárbara. Um amor
levitante. Zona
que se refere aos meus dons desconhecidos.
Há fervorosas e leves cidades sob os arcos
pensadores. Para que algumas mulheres
sejam cândidas. Para que alguém
bata em mim no alto da noite e me diga
o terror de semanas desaparecidas.
Eu durmo no ar dessas cidades femininas
cujos espinhos e sangues me inspiram
o fundo da vida.
Nelas queimo o mês que me pertence.
o minha loucura, escada
sobre escada.
MuIheres que eu amo com um des-
espero fulminante, a quem beijo os pés
supostos entre pensamento e movimento.
Cujo nome belo e sufocante digo com terror,
com alegria. Em que toco levemente
Imente a boca brutal.
Há mulheres que colocam cidades doces
e formidáveis no espaço, dentro
de ténues pérolas.
Que racham a luz de alto a baixo
e criam uma insondável ilusão.
Dentro de minha idade, desde
a treva, de crime em crime - espero
a felicidade de loucas delicadas
mulheres.
Uma cidade voltada para dentro
do génio, aberta como uma boca
em cima do som.
Com estrelas secas.
Parada.
Subo as mulheres aos degraus.
Seus pedregulhos perante Deus.
É a vida futura tocando o sangue
de um amargo delírio.
Olho de cima a beleza genial
de sua cabeça
ardente: - E as altas cidades desenvolvem-se
no meu pensamento quente.
Herberto Helder
Lugar
Poesia Toda
Assírio & Alvim
1979
Imagem por American Modernist School,
“Woman Surrounded by Buildings”,
O som do post anterior desapareceu e creio que de vez porque nem no IMEEM, de onde o copiei, se consegue ouvi-lo.
O poema é demasiadamente longo para o transcrever aqui. De modo que resta-me remeter o leitor para a obra onde o pode encontrar :
Herberto Helder -- Poesia Toda -- "Poemacto I I "
Afinal consegui ouvir o som quando, por acaso, fui aos "comentários". E depois consegui ouvi-lo de novo no próprio post.
Deixo-vos a dica. Tentem, se quiserem, de uma ou outra forma. Pelo sim pelo não, deixo ficar este post.
Atenção a quem quiser ouvir : são (6 : 04).
Ao procurar imagens do Herberto no Google, encontrei este "flash" que se segue. Deu-me um trabalhão descobrir (santa ignorância...) como "metê-lo" no post, mas lá consegui (embora mal -- não ficou como eu queria). É precioso, porque a voz é do próprio Herberto. Quanto à música é de Rodrigo Leão e o título do album de que faz parte é Os Poetas -- Entre Nós e as Palavras .
Conforme prometido continuo :
Em cada mulher existe uma morte silenciosa.
E enquanto o dorso imagina, sob os dedos,
os bordões da melodia,
a morte sobe pelos dedos, navega o sangue,
desfaz-se em embriaguês dentro do coração faminto.
-- Oh cabra no vento e na urze, mulher nua sob
as mãos, mulher de ventre escarlate onde o sal põe o espírito,
mulher de pés no branco, transportadora
da morte e da alegria.
Dai-me uma mulher tão nova como a resina
e o cheiro da terra.
Com uma flecha em meu flanco, cantarei.
E enquanto manar de minha carne uma videira de sangue,
cantarei seu sorriso ardendo,
suas mamas de pura substância,
a curva quente dos cabelos.
Beberei sua boca, para depois cantar a morte
e a alegria da morte.
Dai-me um torso dobrado pela música, um ligeiro
pescoço de planta,
onde uma chama comece a florir o espírito.
À tona da sua face se moverão as águas,
dentro da sua face estará a pedra da noite.
-- Então cantarei a exaltante alegria da morte.
¶
Senti que não é justo "dar" o secreto Herberto Helder aos meus leitores franceses e não o fazer aqui. Ainda não tenho o livro recentemente publicado. Mas a tradução que comprei é uma edição bilingue. Assim não tenho que ir procurar no Poesia Toda e posso pôr neste blog o mesmo que ponho no francês. Vou, pois, transcrever um dos poemas dum livro que se chama O Amor em Visita.
Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra
e seu arbusto de sangue. Com ela
encantarei a noite.
Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher.
Seus ombros beijarei, a pedra pequena
do sorriso de um momento.
Mulher quase incriada, mas com a gravidade
de dois seios, com o peso lúbrico e triste
da boca. Seus ombros beijarei.
Cantar ? Longamente cantar.
Uma mulher com quem beber e morrer.
Quando fora se abrir o instinto da noite e uma ave
o atravessar trespassada por um grito marítimo
e o pão for invadido pelas ondas --
seu corpo arderá mansamente sob os meus olhos palpitantes.
Ele -- imagem vertiginosa e alta de um certo pensamento
de alegria e de impudor.
Seu corpo arderá por mim
sobre um lençol mordido por flores com água.
Por hoje ficamos por aqui. Amanhã haverá mais, que o livro dá pano para mangas.
Andava à procura de Fernando Pessoa em francês, para o blog "de lá". Não encontrei. E aparecia-me tudo em brasileiro. De modo que, quando apanhei este em português, não o quis deixar escapar (enquanto continuo a procurar...).
MADREDEUS -- Haja o Que Houver (video oficial) (4;33)
Lisboa
Isabel Barreno -- A Viagem
Coisas tão subtis se elevam
e se tornam visíveis
Seu nome é o abraço
profundo que nos liga
a essa realidade
arcana
É a ponte
para o mundo mágico que
sempre nos aguardou
No fim desta viagem
de um tempo
a outro tempo
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