O meu último posts sobre o dharma foi o {128}, de 7 de Novembro. Vai sendo tempo de voltar ao tema. Para o fazer vou simplesmente traduzir uma nota de rodapé dum texto do Lama Denys Rimpoché, que esclarece uma questão frequentemente colocada.
A palavra "budismo", inventada pelos indianistas, só apareceu por volta de 1825. O sufixo "-ismo" situa o ensinamento do Buda numa perspectiva teológica, metafísica ou filosófica, sistemática e dogmática que não é de todo a do seu espírito e da sua natureza. A via do Buda traça os contornos de uma "ciência" do espírito [mente] que engloba características humanas e nomeadamente as suas preocupações religiosas. A palavra dharma tem um emprego mais apropriado uma vez que designa habitualmente o ensinamento do Buda, quer dizer o estudo da realidade essencial das coisas e dos seres, sendo entendido que o sentido fundamental deste termo significa "realidade" ou "o que é".
Ontem estava imparável. Foram 3 vídeos [ que me deram um trabalhão, mais à equipa do SAPO ] e depois retomei Pema Chödrön. Mas só hoje acabei...
Como prometido, vou tratar do tema "tomar refúgio".
Hoje vou falar do refúgio nas três jóias -- o Buda, o dharma e a sangha -- e do que isso significa verdadeiramente.
[ Há uma divergência entre os diversos autores. Há quem escreva o sangha e quem prefira a sangha. Em inglês, como é óbvio, o problema não se põe. Mas como estou a traduzir do francês -- e tenho já escolhidos, para citar, outros textos franceses -- a questão coloca-se. Vou seguir o critério de usar a opção da versão que, em cada momento, esteja a citar, embora pessoalmente prefira a, já que a tradução mais simples do sânscrito seja a comunidade. ]
(...)Pensei sempre que a expressão «procurar refúgio» era muito surpreendente porque tem qualquer coisa de téista, de dualista, chama uma dependência : «procurar refúgio» junto de qualquer coisa. (...)
[Ora] a ideia de base do refúgio é que entre o nascimento e a morte estamos sós. Por conseguinte : procurar refúgio no Buda, no dharma e na sangha não significa que encontraremos consolação neles, como uma criança a encontraria em papá-mamã ; é antes a expressão fundamental duma aspiração para saltar do ninho, quer nos sintamos prontos a fazê-lo quer não, a transpor os seus rituais de passagem e a ser um adulto que não tem necessidade de agarrar a mão duma outra pessoa. (...)
(...) O facto de procurar refúgio é o meio pelo qual começamos a cultivar a abertura e a bondade que nos permitem de ser cada vez mais autónomos.
(...) Noutros termos, o único verdadeiro obstáculo é a ignorância (...) a recusa de olhar o que fica em suspenso.
(...) não falamos de encontrar consolação no Buda ,o dharma e a sangha. (:::) O Buda é o despertado, e nós também somos o Buda. É simples. Nós somos o Buda. (...) Eis o que significa ser um ser humano (...).
Tradicionalmente, procurar refúgio no dharma, é encontrar refúgio nos ensinamentos do Buda..Ora bem, os ensinamentos do Buda dizem : Largue-de-mão e abra-se ao seu mundo.(...) Numa perspectiva alargada, o dharma significa também toda a sua vida. (...) Aplicamo-los [ os ensinamentos do Buda ] na maneira de entrar em relação com outrem, nas situações da vida, na sua relação com os nossos pensamentos, as nossas emoções. (...).
Procurar refúgio na sangha significa procurar refúgio na fraternidade (que compreende tanto as mulheres como os homens) daqueles que se empenharam em retirar a sua "armadura" [que se entreajudam para o fazer], abstendo-se de encorejar a sua fraqueza ou a sua tendência a conservá-la.
Prrocurar refúgio nas três jóias não tem nada a ver com refugiar-se, no sentido corrente do termo. (...).
A prática quotidiana consiste simplesmente em fazer nascer uma aceitação completa de todas as situações e emoções e de todos os seres, assim como uma abertura total a tudo isto ; trata-se de fazer a experiência de todas as coisas totalmente, sem reservas nem bloqueamentos, de modo que não nos retiramos, não nos centramos nunca sobre nós próprios,
É por esta razão que praticamos.
Na sequência da última frase do meu post [44] pareceu-me oportuno publicar este vídeo muito curto e que acho muito claro.
Se quiser ver outro vídeo sobre o Budismo pode ir ver o meu post [27]. Ou então clique aqui.
Resolvi publicar este post para chamar a atenção para a existência do Instituto Mind and Life. Foi fundado em 1988, para assegurar a organização regular de encontros entre o Dalai Lama e cientistas ocidentais. De resto, esses encontros já vinham tendo lugar, mas um pouco ao sabor das circunstâncias. Assim, alguns dos participantes resolveram, sempre com o acordo do Dalai Lama, criar o que começou por ser o projecto Mind and Life.
O primeiro encontro decorreu em Outubro de 1987, em Dharamsala, na Índia (cidade onde o Dalai Lama tem residência desde que se exilou). Os resultados foram de tal forma encorajadores que se partiu para a criação do Instituto.
Embora tenham sido muitas as colaborações havidas para essa criação, existem dois nomes que é indispensável pôr em realce. Um é o do americano R. Adam Engle. Ele foi o primeiro Presidente do Instituto e teve a seu cargo a complicada organização logística dos encontros. O outro é o do chileno Francisco J. Varela. Doutorado em Biologia por Harvard, especializado em neurobiologia e epistemologia, trabalhando em Paris (C.N.R.S.), coube-lhe a coordenação científica dos trabalhos. Muito conhecido nos meios científicos por causa das suas publicações e dispondo de muitos contactos em várias áreas do conhecimento, ele trabalhou afincadamente para que os encontros Mind and Life fossem um sucesso, bem demonstrado pelos livros a que deram origem. Infelizmente faleceu há pouco, precocemente.
O nome do Instituto foi escolhido cuidadosamente para designar bem a interface, o mais frutuosa possível, entre a ciência ocidental e a tradição búdica. Dada a sua natureza, não é de espantar que os primeiros encontros recoressem sobretudo a especialistas das neurociências (o "nosso" António Damásio participou num deles) e das chamadas ciências cognitivas. Pouco a pouco os temas foram mudando e, a partir de certa altura, além dos filósofos, dos psicólogos, dos psicanalistas, dos linguistas ou dos antropólogos, encontravam-se também especialistas em astrofísica, em cosmologia ou em física quântica. No fundo, nenhuma área é dispensável quando, como disse o Dalai Lama num dos encontros, «(...) nós não aderimos ao sentido literal das palavras de Buda quando elas são refutáveis por uma prova válida».
Aqui convirá apontar duas precisões semânticas : a primeira é búdica, a segunda é ocidental. A búdica tem a ver com a palavra , em sânscrito, dharma. O termo é altamente polissémico : tanto significa o ensinamento (o Dharma do Buda), como o conhecimento ou a sabedoria, como ainda a via, o caminho, para os alcançar. E poderíamos continuar...
A segunda remete para um problema relativo ao francês. Com efeito, eles não têm substantivo para o nosso mente (ou o inglês mind). O equivalente francês é esprit. Existe o adjectivo mental (que, por vezes, é substantivado), mas o que é corrente é usarem a palavra esprit. Assim não podem distinguir entre mente e espírito. O que, quando está em causa o budismo, é particularmente lastimável. Voltando a citar um Lama (que, entretanto, foi "promovido" a Rimpoché -- para quem sabe o que isto significa...) : « O budismo não é materialista nem espiritulista, é realista e experimental ».
Completo com : no budismo não há credo, nem dogma, nem Deus.
(...) a harmonia que existe entre o dharma e o pensamento contemporâneo, a adequação profunda do buda-dharma com a ciência contemporânea. Não somente não há contradição entre a ciência tradicional do dharma -- este conhecimento do conhecimento -- e os novos paradigmas da ciência contemporânea, mas ainda há uma convergência e um encontro cada vez mais íntimos entre elas.
Lama Denis Teundroup
Este dharma do Buda tratando da nossa natureza interior, do nosso ser profundo, chama-se « ciência interior ». É o nome tradicional daquilo que no Ocidente é chamado « budismo ».
Kalou Rinpoché
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